7 de maio de 2020

amordaçados

máscara de gás para crianças - II guerra mundial


notei que quando estou com a máscara no rosto, tendo a deixar a boca tensa, sem sorrir. também notei que andava com os braços afastados do corpo como se fosse um problema tocar a mim mesma. sair de casa e voltar tem sido um aprendizado nos últimos dois meses. como se fosse outro o corpo, como se fosse outra a casa. como se fôssemos outros os que habitamos esta cidade.

descobri que de máscara e com os cabelos presos as pessoas conhecidas não me reconhecem. antes, já me acontecia isso: estar com os cabelos presos era passar desapercebida. mas o sorriso ficava exposto. agora, sem cabelos ao vento e sem sorrir, ou com o sorriso velado pela máscara, quase desapareço.

penso que me transformo naquela mosca que uma ou outra vez na vida todo mundo quer ser.

 

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máscara que tapa a boca e o nariz não deveria se chamar máscara como aquela que só tapa os olhos. pra gente não se confundir.

a máscara. homens negros dizem que estar de máscara ao entrar nos lugares os expõe a um perigo maior do que contrair covid19.

a máscara. nos filmes de bang bang, o bandido vai de cara tapada. quem mostra a cara é o outro.

a máscara. nos filmes de terror é a vítima que.

a máscara. quando a democracia aponta para a redução de privilégios, a máscara é a mordaça: a elite amordaça profetas, depois amordaça todo mundo.

a máscara. o véu. a burca. a máscara. a tragédia a comédia o drama.

máscara e mordaça.

o silêncio dos inocentes.

mesmo sem máquina de costura, é bem rápido produzir uma máscara com tecidos que já tínhamos em casa. o problema é que dá uma angústia produzir máscaras. faz pensar no amplo mundo e a gente  tão pequeno dentro. tão miserável.

miserável quer dizer digno de compaixão. uma miséria que não perde a dignidade de receber a atenção do outro, o coração do outro. faz a gente pensar em misericórdia.

 

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misericórdia me lembra uma oração menos popular que a ave maria e o pai nosso. e que eu sempre achei confusa, embora me fizesse pensar em coisas bonitas ao mesmo tempo. por exemplo, começa com salve rainha mãe de misericórdia vida doçura e esperança nossa salve. como eu não sabia onde por as vírgulas, achava bonita esta explosão de substantivos e adjetivos, embora um pouco desconectados do meu ponto de vista infantil.. por exemplo, é mãe, tão próxima, e rainha, uma tirana. como conjugar tudo na mesma pessoa? e era mãe da vida, da doçura, da misericórdia e da esperança ao mesmo tempo que era a nossa salve. porque não diziamos a nossa salvação? me parecia tão misteriosamente poético tudo aquilo. até descobrir que um vale de lágrimas não é um lugar bonito, com lágrimas de cristal pendurados nos galhos das árvores entre verdes e luz do sol, formando pequenos arco-íris. eram lágrimas de quem sofre. nada de luz. já deixei de gostar. não queria ser uma degredada filha de eva.

muito depois descobri lilith.

 

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ontem fiquei mais de sete horas assistindo sátántango, do bela tarr. tudo é que ele faz é muito bonito. é como se os olhos dele pegassem meus olhos pela mão e os fossem conduzindo pelo mundo para que,  tudo aquilo que ele viu, eu também possa ver a história acontecendo. o tamanho do mundo depende do nosso olhar.

há planos longuíssimos. muitos. como aquele começo do sacrifício, do tarkovsky. mas diferente.

 

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tarr, tarkovsky, varda, marker, kieslowski, wenders, duras são alguns.  não gosto das listas porque reduzem o mundo. gosto das listas porque reduzem o mundo. às vezes é bom, às vezes é ruim.

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