21 de maio de 2020

da doçura das tias

quase todo mundo tem uma tia que é espaço de respiração no mundo da família.

quando eu era pequena, duas tias me encantavam. uma estava bem próxima, era mulher do irmão da minha mãe. tinha cabelos longos e me deixava trançá-los e destrançá-los. cantava. gostava de flores. fazia aniversário no dia 18 de janeiro. morreu há uns quinze anos.

a outra, que fazia aniversário no dia 19 de janeiro, vivia mais no imaginário. num mundo que teria sido se não houvesse a guerra, a migração, as separações. os desaparecimentos.

durante a segunda guerra mundial, meus avós maternos saíram da hungria. o grupo era meu avô, minha avó, os pais do meu avô, a mãe adotiva da minha avó (que também era sua tia), uma das filhas do primeiro casamento da minha avó, minha mãe e seu irmãozinho. às vezes separados, às vezes todos juntos. com todos os conflitos que sempre aparecem entre pessoas que nunca tinham convivido muito, no meio da tensão da guerra e do abandono da vida confortável que tinham antes.

depois de cinco anos em campos de refugiados, meu avós com os dois filhos decidiram ir para o brasil. os pais do meu avô decidiram voltar para a hungria já ocupada pelo exército soviético. a mãe adotiva da minha avó resolveu ficar na alemanha, onde decidiu morrer poucos anos depois. a filha do primeiro casamento da minha avó, se apaixonou pelo professor, que já era casado. como no brasil não havia lei de divórcio, decidiram esperar na alemanha até resolver a situação. quando saiu o divórcio e eles puderam se casar, o brasil já tinha fechado as fronteiras para receber refugiados de guerra europeus.

(getúlio vargas anunciou que receberia 700 mil refugiados, mas o número ficou muito, muito, muito abaixo disso.)

a austrália ainda estava aberta.

minha tia e o marido foram para a austrália. quando chegaram lá, ficaram um tempo em quarentena, foram pulverizados com bhc para matar piolhos e percevejos, o que toda família que passa por estas situações sabe que era bem comum. tanto que ao serem enviadas para câmaras de gás muitas pessoas acreditavam – e queriam acreditar porque em situações extremas a gente se apega, mesmo, a toda crença – que aquilo seria só um processo de desinfecção. no caso da minha tia, ela não foi morta pelo bhc. mas o filho que ela trazia na barriga, sim. nasceu, viveu um ano e morreu. anos depois é que se pôde conectar lé com cré. a tristeza da perda permanece para sempre.

nos primeiros anos da nova vida dela na austrália e dos meus avós no brasil, houve cartas. meses pra chegar uma carta. mas chegavam. iam, vinham, notícias esparsas. sempre à espera de encontrar de novo. a vida passa. a gente sabe como a vida passa entre fazer as coisas do cotidiano, trabalhar para pagar as contas, rir, amar, encontrar os amigos.

com o passar das cartas, o tal professor já não era exatamente o que parecia ser nos tempos da alemanha. minha tia se divorciou do seu professor. conheceu um homem maravilhoso e se casaram. a foto da minha tia com o homem que ela tanto amou, com uma taça de espumante nas mãos é a imagem que me vem sempre à memória. e durante muito tempo aquela mulher, com aquele sorriso, era a minha tia imaginária que abria espaços ventilados no mundo da família.

um dia as cartas deixaram de chegar. não sei quando, não sei quanto já se sabia de tudo o que ela tinha passado e buscado e sofrido. sei que minha avó tinha uma filha na hungria, dois filhos no brasil e uma filha desaparecida. e o desaparecimento não era mais que mudança de endereço concomitante da minha avó e da minha tia para cidades diferentes, e nem as cartas de lá chegaram a tempo de serem respondidas com um aviso de mudança de endereço, nem as cartas do brasil chegaram na austrália a tempo. ou esta é a versão que ficou hegemônica. há outras. de diferenças no modo de ver a vida, da vida, mesmo, comendo o tempo das cartas, tudo urge. e as cartas existem quando há perspectiva de encontro, nem que seja um encontro no campo das ideias ou dos afetos. como saber?

um dia, muitos anos depois, e com ajuda da cruz vermelha, minha avó voltou a contatar minha tia. o pai da minha tia já tinha morrido, meu avô já tinha morrido. este conflito já era antigo e ultrapassado. e não me lembro quem fez a longa viagem primeiro. sei que minha avó foi para a austrália, num voo longo, demorado, cansativo. já tinha quase noventa anos. e minha tia também veio. tenho tão clara a imagem dela chegando, saindo da porta do desembarque no aeroporto. e era idêntica à minha avó. ou ao que a minha avó tinha sido uns anos antes. e era “a tia”, concreta, amorosa, doce, risonha, divertida.

então, eu já uma jovem adulta, entendi as histórias que ela tinha vivido. e soube que ao morrer o segundo marido, ela se casou com um amigo que também tinha ficado viúvo. ele tinha quatro filhos, ela cuidos das crianças como se fossem suas. ficaram juntos muitos anos. até a morte dele.

(quando ela estava na nossa casa, umas amigas que eram do acre também estavam lá. e me lembro de uma conversa que até hoje não entendo como se deu: minha tia só falava hungaro e ingles. minha amiga querida só falava portugues. ficaram um tempo só as duas, nem sei por quê. mas depois desse tempo, sabiam muitas coisas uma da outra.)

quando ficou viúva, voltou a viver na hungria, também para estar mais perto da sua irmã mais velha que, a essas alturas vivia na alemanha. as duas se amavam muito.

ela escreveu muito. registrou suas memórias, publicou. gerou controvérsia na família e me fez entender que memória é sempre muito particular, e sua função é mais explicar para nós mesmos quem somos do que os fatos históricos dos quais participamos. nos últimos anos também reuniu seus poemas em livro.

em 2012 fomos à hungria e combinamos de tomar um chá da tarde com a minha tia. ela avisou que não estava saindo muito, com dificuldade para fazer as coisas. mas quando chegamos lá, depois de subir a maior escada rolante que já vi em toda a minha vida, ela nos esperava com croissants, bolos, chá, café, leite com chocolate para as crianças, e um espumante! colocou julio iglesias cantando my way e dançamos. e conversamos entre o ingles, o húngaro, o olhar que não precisa de língua nenhuma. na casa dela, entre pinturas da minha avó, móveis da minha bisavó e o jeito de minha tia que era tão parecido com a minha avó, me senti menina outra vez. e vi a vida me atravessando de certa forma. me vi sendo naquele mesmo fluxo que atravessava as mulheres que vierem antes de mim.

em 2018 minha tia fez 90 anos e fui à hungria para participar da festa, sem saber que haveria uma festa. combinamos que eu almoçaria com ela no dia do aniversário. cheguei cedo, mas minha tia já não me parecia muito lúcida, porque ou me confundia com a minha mãe, ou falava de pessoas que viviam na austrália como se elas estivessem ali, na residência para onde ela tinha se mudado.

quando começaram a chegar os convidados, entendi que uma das suas noras e a sua neta querida também estavam em budapest para celebrar os 90 anos.

além do almoço estávamos todos convidados para uma pequena cerimônia em que um representante da prefeitura de budapest entrega um diploma para pessoas que vivem mais de 90 anos. enquanto participávamos da cerimônia, começou a nevar. o lugar da residência é no alto de budapest, e desde umas janelas imensas se via a neve caindo, lenta, silenciosa, como costuma ser a neve.

quando pensei que seria já hora de ir embora, me dei conta que estava na lista de convidados para o jantar no karpatia, um restaurante que tinha sido um clássico quando a minha avó era menina. a nora e a neta da minha tia me propuseram de passar o tempo com elas até a hora de jantar. e nos conhecemos. e conheci melhor minha tia mesmo que ela não estivesse com a gente.

foi uma noite muito divertida. um grupo pequeno, umas dez ou doze pessoas. quando minha tia chegou com seu namorado, os músicos da banda foram recebê-la com suas canções preferidas, os csárdás e a música folclorica húngara. então eu soube que uma vez por mês eles iam ali para jantar e dançar. nenhum outro lugar teria mais significado do que aquele para comemorar os noventa anos, mesmo que ela já não conseguisse mais dançar.

combinamos de voltar a nos ver na festa dos noventa e cinco, em 2023.




dela, da dora, além das coisas que não sei, herdei um dos meus nomes: theodora, que quer dizer presente de deus.

não vai ter festa dos noventa e cinco.







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