5 de maio de 2020

espera e contemplação

aproveitei algumas embalagens de ovo para plantar. plantei tomates e pimentões. separei a semente de frutos maduros, carnosos, vermelhos. pus as sementes na terra e as aconcheguei como quem põe criança pra dormir. esperei. esperei. e parece uma espera longa porque o ato de por a semente na terra já faz a gente pensar na colheita. e não é pra isso que se planta. continuei esperando. um dia as sementes de tomate brotaram. eram muitas. já vão á espigadinhas em busca da luz. num dia de vento, com o mudeiro ao ar livre, quase perdi as plantinhas. trouxe pra dentro, improvisei uma estufa, para que ficassem a gosto. ficaram. continuaram a crescer. usei minha mão pra fazer a seleção natural. deixei as mais firmes e felizes, arranquei umas quantas, com delicadeza e dor no coração. e nada dos pimentões brotarem. hoje, quando pensava que logo terei que transplantar os tomateirinhos, me dei conta de folhinhas verdes onde antes não havia: e lá estão, duas mudinhas de pimentões. a vida é espera e contemplação. e tudo o mais que acontece enquanto isso.

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me preparo para assistir sátántango, do bela tárr. pensei em escrever que o tárr talvez seja o meu cineasta vivo preferido mas achei que é difícil colocar diferentes tipos de cineastas numa mesma lista. prefiro escrever: um cineasta que me fascina e de quem gosto muito. a lentidão das tomadas, o preto e branco, a música. mais que isso, é como se ele fizesse filmes com os detalhes da vida que ninguém repara, ou que ninguém dá valor. e não são só detalhes bonitos. são detalhes, histórias pequenas, miúdas, de gente miúda. e o fim de tudo.

perguntaram ao bela tárr se ele era um cineasta independente. ele disse: independente do quê? se dependo da indústria que produz equipamentos de filmagem, se dependo da captação de recursos, se dependo de uma equipe imensa para fazer um filme, não posso dizer que sou independente. isso não existe.

me lembrou os tempos em que estudei latour e sua descrição de como funciona a ciência. ele dizia que o inventor que parecia mais independente de tudo era o que mais estava consolidado nas redes e aquele que parecia atado e que não tinha liberdade para nada, estava na verdade totalmente desconectado. e que a ciência, como todo conhecimento, avança na medida em que se conecta. estamos todos conectados. todos dependemos de todos. as mudinhas de tomate e pimentão e eu.

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há anos moramos numa casa em que os móveis não são nossos porque alugamos assim, já com os móveis, era mais prático. agora, na iminência de uma mudança, já começo a antecipar a saudade que sentirei de coisas que não virão conosco quando nos mudarmos. o exercício de ser nômade parece circunscrito a determinados momentos da vida. e é, no entanto, próprio da vida. o nomadismo é um exercício constante. alma cigana.

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num grupo de whatsapp em que “por favor, este grupo não é para falar de política”, um bozonazista mandou uma piadinha sobre a reação do bozo diante do coronavírus. a dúvida é se agora se pode falar de política naquele grupo, se o bozonazista deixou de apoiar o bozo, ou se ele nem entendeu que está tirando uma com a cara do bozo.  

volto para o latour que nos lembra: se você diz alguma coisa e os outros falam mal ou bem, você está no caminho certo, se te ignoram, você está ferrado, você não existe. nosso amigo bruno disse isso com outras palavras, mas achei que assim ficava mais claro. pelo menos pra mim.

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se você não gosta de alguma coisa, não diga nada, ignore. fique quieto. fico quieta.

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"escute esta canção esta canção ou qualquer bobagem..."

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