30 de abril de 2020

arroz com brócolis


nestes tempos em que todo mundo fica em casa e mal pode ir ao supermercado, apareceu uma palavra nova entre as postagens de receitas e dicas de alimentação: comida circunstancial. quer dizer fazer comida com aquilo que se tem em casa e não buscar uma receita, comprar os ingredientes da receita e, só então, prepará-la. achei engraçada a expressão. na verdade é o jeito de cozinhar de quem faz isso no cotidiano. ou eu, pelo menos, há tempos cozinho assim. olho pro que temos e componho uma refeição. às vezes, faz sucesso. outras vezes, nem tanto, mas é nutritivo e vamos comer para nos alimentar, eu digo.
minha grande mestre neste jeito de fazer a comida foi minha mãe. não que eu quisesse aceitar qualquer coisa que ela pudesse me ensinar. pelo contrário. bastava ela me dizer: vou te mostrar como se faz não sei quê e eu já estava a quilômetros de distância. pelo menos o pensamento estava. mesmo assim, quando menos espero, sei que ela me ilumina.
uma vez juntou gente em casa e quando menos esperava, ela apareceu com um suco de pitanga verde! aproveitou folhas de pitanga, bateu com água, um pouco de açucar e uns limões que encontrou no quintal, perto da pitangueira.
talvez ela tenha aprendido sem perceber que aprendia nos tempos de pós guerra, em que faltava tudo. em que tudo era pouco.

***

me lembro uma vez da gente indo pro sítio, só nós, minha mãe e eu, numa noite de chuva e lama. tive que descer do carro várias vezes para empurrar enquanto ela acelerava, pra desatolarmos na estradinha de terra. chegar na casa e ter fome. não dava pra acender o fogão a lenha. pra emergência tinha um botijãozinho de gas com uma boca. e ela preparou com brocolis que foi buscar na horta, com cebola e toicinho, o melhor arroz que já comi na vida.
nesse mesmo sítio, onde meus pais costumavam passar os finais de semana, o fogão ficava com lenha queimando porque aproveitava pra esquentar a água do banho numa serpentina que passava por dentro do fogão. e numa panela bem grande, com água, eles iam juntando cascas de cebola, cenoura, talo de coisas, restos de carne, ossos, o que fosse, fazendo um caldo que ia cheirando cada vez mais. daí, jogavam arroz quebrado dentro, deixavam cozinhar até virar uma papa. quando esfriava, e antes de saírem para voltarem pra cidade, davam aquela comida pro cachorro. como cheirava bem.
um dia alguém chegou com fome e sem dizer nada se serviu daquela sopa. elogiou muito. quem é que ia dizer que era a comida do cão?

***

as histórias se engancham umas nas outras. também teve uma vez que minha mãe fez pão e deixou esfriando em cima de uma mesa que nem era tão baixa. na hora da siesta, um dos cães entrou e comeu uma boa parte do pão. lembro do pão todo mastigado. (ou era meu irmão que tinha feito pão nesse dia?)
um dia que lembro bem: meu irmão tinha feito pão e ficou bonito, meio rústico.
- o que você pos nesse pão?
- germen de trigo.
- ah, não tinha acabado o gérmen de trigo?
-...
- onde você encontrou?
- pendurado ali na despensa.
- hmmm... aquilo ali é ração pra crescimento dos frangos.

***

nem esse pão a gente jogou fora.
nenhum pão se joga fora.
às vezes a gente compra pão. às vezes a gente compra mais pão do que é capaz de comer. às vezes vai sobrando pão. chega a sobrar um saco de pão. não consigo jogar fora e não preciso de muita farinha de rosca. inventei de fazer pudim. falei prum amigo: teu filho disse que voce sempre faz pudim de pão. ele disse que é mesmo, que teve um tempo que fazia, sim, mas como engorda muito deixou de fazer. mas é só misturar com leite. só leite? acho que sim. não vai ovo? ah, talvez. e açucar? acho que sim, né? mas pouco. só isso? não lembro bem.
fiz. fiz misturando com um tanto de leite, ovo, açucar, manteiga. e pão velho, claro. ficou bom. canela por cima. não sei dizer a receita.

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quando quiser registrar uma receita, leve o resultado pra neide, se ela gostar, vai perguntar como você fez. ela vai ouvir e sistematizar depois, com medidas e tudo. e registrar. se você estiver longe da neide, como eu estou, só posso dizer: sinto muito. e no pensamento vou concluir a frase dizendo que sinto muito é saudade da neide.  e da minha mãe. e do sítio. dos dias que a gente passava no sítio. sem nem saber que estava fazendo comida circunstancial....

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está ventando muito hoje. olhando pela janela, me sinto num navio à deriva. talvez seja o mundo, um mundo à deriva.

2 comentários:

Ellen disse...

que lindo, V.

v. paulics disse...

tua companhia, ellen, alegra o coração.
não tenho achado nada lindo, não. são anotações esparsas, é como se o pensamento se truncasse todo o tempo.