ontem saí.
fui ao supermercado. desde o dia 27 de março não punha o pé fora de casa. pela
primeira vez saí de máscara. para reconhecer as pessoas é preciso reparar bem
nos olhos, fixar-se nos olhos, adivinhar ali alguma presença conhecida. é
estranho.
é estranho
também que entre os dias 13, quando começou o confinamento, e o dia 27, quando
saí pela primeira vez depois de duas semanas em casa, parece que passou mais
tempo. as duas primeiras semanas foram longuíssimas, a terceira, tristíssima e,
depois, como se uma nova realidade tivesse se imposto como normal: todos em
casa o tempo todo, almoçamos, jantamos, batemos palmas às oito da noite, não
saímos. se vemos outras pessoas é na distância das janelas, na hora das palmas,
ou pelas telas do telefone ou do computador.
quarenta e
tantos dias assim e o que era tão estranho já parece normal.
minha mãe
sempre diz que se os cachorros se adaptam a tudo, por que nós não nos
adaptaríamos?
não sei se
gosto da tendência à adaptação. às vezes isso faz a gente se conformar em
ocupar os espaços que não provoquem dor, uma contenção, um manter as coisas
como estão com medo de enfrentar o que é desconhecido.
***
dia desses
li – tenho lido tanto e de forma tão desordenada que já não sei onde ou quando
ou de quem – que não é do desconhecido que se tem medo, é do conhecido. quando a gente está em determinada situação,
imagina o que pode acontecer a partir dela. este imaginar engloba situações já
conhecidas, a partir do repertório que se tem. entre as situações imaginadas há
aquelas que a gente deseja, outras, que a gente imagina saber manejar, também
aquelas que a gente não deseja e imagina que não será capaz de manejar, e
outras que a gente imagina, a partir do repertório que tem, embora não façam
sentido estar encadeadas ao que de fato está acontecendo. a isso a gente chama
de desconhecido. as coisas que a gente não é nem capaz de imaginar, supor,
pensar não nos dão medo porque não estão presentes entre as possibilidades. ou
seja, só temos medo do conhecido. do desconhecido ninguém se ocupa.
do que é
que a gente tem medo? de um mundo sem humanos? ou de um mundo que tenha humanos
mas sejam poucos, e não estejamos nós e os nossos entre os poucos? quem compõe
o nosso “nós”? ou o medo nem é de quais
humanos continuem, mas que mundos se constroem a partir de um jeito ou outro de
selecionar quem vive e quem morre. talvez o maior medo seja, além de morrer,
que não participemos das decisões quanto a quem sobrevive e quem morre.
quando leio
as matérias sobre falta de leito em uti, o que mais me angustia é o tal
protocolo para decidir quem tem acesso ao cuidado intensivo e quem não terá
esta chance. de cara, no mundo, há muitas pessoas que não terão esta chance,
porque onde elas vivem não só não existe uti, como não existe hospital. e quem
decidiu este jeito de estarmos no planeta e termos ou não acesso aos recursos?
gostaria de pensar que decidimos isso junto, enquanto humanidade, mas sei que
não é bem assim.
e estes
desconhecidos, que decidem por mim, decidindo por todos nós, me dão medo.
***
o medo é
importantíssimo para nos preservar. além disso, ele desperta no corpo a
adrenalina que dará coragem. que fará a gente correr ou saltar, que fará pensar
mais rápido, agilizar a tomada de decisão entre várias alternativas.
se o medo é
muito, pode também deixar a gente paralisado.
não é
verdade que se correr o bicho pega e se ficar o bicho come. não sempre.
(impossível
não pensar no stephen fry e no zeca baleiro ao falar do bicho que pega ou que
come. mas se penso no zeca baleiro também cantarolo “um céu cheio de estrelas
feitas com caneta bic num papel de pão” e a imagem me dá calma. como ontem
fiquei mais calma depois de inventar umas rosas de papel cortado em espiral.)
às vezes o
segredo para ultrapassar o medo que paralisa é desfocar o olho, buscar outra
perspectiva.
ou fechar
os olhos.
e
parafraseando laerte: quando olho para dentro de mim, vejo o que há dentro de
todo mundo.
***
e volto pra
orides, como um mantra: “A vida é que nos tem: nada mais temos”
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