24 de abril de 2020

com caneta bic num papel de pão


ontem saí. fui ao supermercado. desde o dia 27 de março não punha o pé fora de casa. pela primeira vez saí de máscara. para reconhecer as pessoas é preciso reparar bem nos olhos, fixar-se nos olhos, adivinhar ali alguma presença conhecida. é estranho.
é estranho também que entre os dias 13, quando começou o confinamento, e o dia 27, quando saí pela primeira vez depois de duas semanas em casa, parece que passou mais tempo. as duas primeiras semanas foram longuíssimas, a terceira, tristíssima e, depois, como se uma nova realidade tivesse se imposto como normal: todos em casa o tempo todo, almoçamos, jantamos, batemos palmas às oito da noite, não saímos. se vemos outras pessoas é na distância das janelas, na hora das palmas, ou pelas telas do telefone ou do computador.
quarenta e tantos dias assim e o que era tão estranho já parece normal.
minha mãe sempre diz que se os cachorros se adaptam a tudo, por que nós não nos adaptaríamos?
não sei se gosto da tendência à adaptação. às vezes isso faz a gente se conformar em ocupar os espaços que não provoquem dor, uma contenção, um manter as coisas como estão com medo de enfrentar o que é desconhecido.

***

dia desses li – tenho lido tanto e de forma tão desordenada que já não sei onde ou quando ou de quem – que não é do desconhecido que se tem medo, é do conhecido.  quando a gente está em determinada situação, imagina o que pode acontecer a partir dela. este imaginar engloba situações já conhecidas, a partir do repertório que se tem. entre as situações imaginadas há aquelas que a gente deseja, outras, que a gente imagina saber manejar, também aquelas que a gente não deseja e imagina que não será capaz de manejar, e outras que a gente imagina, a partir do repertório que tem, embora não façam sentido estar encadeadas ao que de fato está acontecendo. a isso a gente chama de desconhecido. as coisas que a gente não é nem capaz de imaginar, supor, pensar não nos dão medo porque não estão presentes entre as possibilidades. ou seja, só temos medo do conhecido. do desconhecido ninguém se ocupa.
do que é que a gente tem medo? de um mundo sem humanos? ou de um mundo que tenha humanos mas sejam poucos, e não estejamos nós e os nossos entre os poucos? quem compõe o nosso “nós”?  ou o medo nem é de quais humanos continuem, mas que mundos se constroem a partir de um jeito ou outro de selecionar quem vive e quem morre. talvez o maior medo seja, além de morrer, que não participemos das decisões quanto a quem sobrevive e quem morre.
quando leio as matérias sobre falta de leito em uti, o que mais me angustia é o tal protocolo para decidir quem tem acesso ao cuidado intensivo e quem não terá esta chance. de cara, no mundo, há muitas pessoas que não terão esta chance, porque onde elas vivem não só não existe uti, como não existe hospital. e quem decidiu este jeito de estarmos no planeta e termos ou não acesso aos recursos? gostaria de pensar que decidimos isso junto, enquanto humanidade, mas sei que não é bem assim.
e estes desconhecidos, que decidem por mim, decidindo por todos nós, me dão medo.

***

o medo é importantíssimo para nos preservar. além disso, ele desperta no corpo a adrenalina que dará coragem. que fará a gente correr ou saltar, que fará pensar mais rápido, agilizar a tomada de  decisão entre  várias alternativas.
se o medo é muito, pode também deixar a gente paralisado.
não é verdade que se correr o bicho pega e se ficar o bicho come.  não sempre.
(impossível não pensar no stephen fry e no zeca baleiro ao falar do bicho que pega ou que come. mas se penso no zeca baleiro também cantarolo “um céu cheio de estrelas feitas com caneta bic num papel de pão” e a imagem me dá calma. como ontem fiquei mais calma depois de inventar umas rosas de papel cortado em espiral.)
às vezes o segredo para ultrapassar o medo que paralisa é desfocar o olho, buscar outra perspectiva.
ou fechar os olhos.
e parafraseando laerte: quando olho para dentro de mim, vejo o que há dentro de todo mundo.

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e volto pra orides, como um mantra:  “A vida  é que nos tem: nada mais temos”

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