21 de abril de 2020

nada mais temos


cortei a parte de cima da cenoura e coloquei na água. não tinha muita perspectiva de que brotasse porque nem era uma cenoura orgânica, ficou uns dias na geladeira, não veio com o talo. e, mesmo assim, hoje, olhando de pertinho, vi que há um broto minúsculo. é um fiapinho de verde novo. também a cebola que brotou na geladeira está crescendo devagarinho num vaso. e a batata que plantei este ano já é uma planta bem grande. folhas, tem, resta saber se teremos batatas. um tomateiro também já começou a crescer no mesmo vaso em que plantei o manjericão e a cebola. a rúcula, a hortelã, a sálvia rebrotaram assim que chegou o calorzinho da primavera e continuam crescendo felizes. como os gerânios. o alecrim nem se abalou com o frio. a babosa segue firme. tudo esverdeando o metro quadrado onde vivem amontoados pra aproveitar o sol da tarde.
estes dias de muita chuva é bom pras plantas. também as árvores que vemos das janelas, ficam com as folhas super verdes e em contraste com os troncos lisos e brilhantes, quase negros, e é uma visão bonita, apesar do tempo cinza, e meio frio.
lá fora, o casal de gaivotas que fez ninho debaixo de um dos brinquedos, parece nem se afetar com a chuva. as patas das gaivotas parecem as patas dos patos. a gente esquece que gaivota é ave de água. tantos dias sem ver o mar e parece que o mar não existe. tanto tempo sem ver o mundo e parece que o mundo não existe. se todo mundo que a gente vê é só pela tela, daqui a pouco não saberemos se o que vemos de verdade existe ou é uma gravação antiga, um programa tipo aquele que faz as imagens do trump, do papa, da rainha da inglaterra dizerem o que a gente quiser que digam.

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se aqui as pessoas já não eram muito de abraços, imagina quanto tempo não terá que passar para que voltem a ter um mínimo de coragem para abraçar alguém! conversamos sobre isso enquanto nos abraçamos na cozinha, neste dia cinza e molhado. a gente é tão feito de abraços quanto de pão. eu penso. partilhar um e outro, para seguir vivo e se sabendo cúmplice e solidário.
hilda hilst faria 90 anos hoje. é engraçado pensar nisso. quanto tempo alguém faria. vou inverter o pensamento: hoje faz 90 anos que a hilda nasceu. faz 80 que a orides fontela nasceu. mulheres que nasceram, viveram, escreveram, passaram maus bocados na vida. e iluminam o mundo com o que escreveram. volta e meia revisito hilda, especialmente a prosa. atualmente tem mais gente lendo a poesia dela, também foi traduzida para o castelhano. mas a prosa! que coisa linda, o ritmo, o fluxo que vai ali numa construção que envolve e repele, que abraça e afasta. o desconforto. e o maravilhamento.
nisso ela se parece com a orides. são poemas que parecem tão doces, quase esta poesia bibelô, de copiar nos cadernos adolescentes e, de repente, há uma explosão, uma implosão, uma pequena catástrofe. é o quando a gente se dá conta do que está escrito ali, naquele pouquinho de letras, de palavras tão simples. e ali o desconforto e o maravilhamento.
duas mulheres que admiro. feliz aniversário pra elas. que vão ressuscitando entre leitores.

"Era telúrico e único. Sonhava. Sonhava adeuses e sombras. Sonhava deuses. Era cruel porque desde sempre foi desesperado. Encontrou um homem-anjo. Para que vivessem juntos, na Terra, para sempre, ele cortou-lhe as asas. O outro matou-se mergulhando nas águas. Estou vivo até hoje. Estou velho. Às noites bebo muito e olho as estrelas. Muitas vezes, escrevo. Austero, sonho que semeio favas negras e asas sobre uma terra escura, às vezes madrepérola."
(Hilda Hilst)

“A vida é que nos tem: nada mais
                               temos”
(Orides Fontela)

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percebo cada vez mais, na medida que os dias passam, que  não tenho ferramentas suficientes para compreender o que estamos vivendo e para onde vamos. leio muita coisa e só me perco.
desejo de lucidez.

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escuto els manel. 

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