13 de abril de 2020

dentro da caverna





para os dias 10 e 11 de abril foi convocada uma greve de produção de conteúdo cultural de divulgação nas redes sociais. é um jeito de chamar a atenção para a importância desta produção de conteúdo e que sempre é desvalorizada, como se a cultura fosse uma coisa qualquer, que qualquer um faz, que não precisamos destinar recursos especificamente para isso. com o confinamento ficou claro o quanto todos necessitamos de conteúdos culturais. e este mesmo confinamento aponta para um futuro muito difícil para quem trabalha com cultura e entretenimento.
apoiei a greve. por isso não escrevi estes dias. e também porque em geral não escrevo nos finais de semana. quer dizer, escrevo. continuo fazendo meu pequeno diário de sete coisas vistas, ouvidas, feitas. o diários perfeito. não como alguma coisa que não tem defeito, mas como alguma coisa acabada e pronta. como o passado perfeito, perfazido, cumprido. um diário de pequenas coisas cumpridas. (pelo ritmo do tempo, em alguns dias o diário deveria se chamar pequenas coisas compridas).

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volto a me ocupar das memórias da minha avó: quando ela estava já com mais de 80 anos, resolveu compor uma autobiografia, registrar seu percurso no mundo a partir do que se lembrava. a vida de cada dia relembrada em alguns momentos com mais registros e de forma mais genérica em outros. a versão que tenho foi digitada por minha mãe e minha tia, onze anos mais velha que minha mãe. ambas concluíram que havia coisas nas memórias da minha avó que não mereciam ou não deveriam ser transcritas. tenho o original guardado longe daqui. a letra da minha avó não é tão fácil de decifrar.  então, leio a transcrição que passou por uma seleção.
um dos temas nas memórias é o final da primeira guerra mundial, quando a hungria tinha perdido a guerra,  e oficiais retornados das frentes de batalha promoveram um levante contra o governo imperial -  a revolução dos crisântemos - buscando a constituição de uma república democrática independente do império austro-húngaro. minha avó tinha quase 14 anos, muita energia e quase não podia sair. para coroar tudo isso (me ocorre agora que é um péssimo jogo de palavras com a covid e a revolução contra o imperador...), veio a chamada “gripe espanhola” (que de espanhola não tinha nada). e era esta descrição que eu queria reler.
ela se lembra que a recomendação médica era que passassem a maior parte do tempo meio embriagados, para dormir, descansar, não gastar energia. não havia muita comida, não havia empregados – muitos morreram em decorrência da gripe –mas conseguiram uma cabra do jardim zoológico (!) e assim tinham leite e, de algum lugar que ela não tem ideia, apareceu uma lata enorme de sardinhas em conserva. não muito mais que isso. dois parágrafos em 70 páginas de 96 anos de vida.  talvez nós também só tenhamos memória difusa de tudo isso que vivemos.

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às vezes me pergunto quanto tempo nos manteremos neste confinamento sobre o qual temos pouca ou nenhuma governabilidade? aonde vai nos levar? o que podemos fazer estando nele, estando confinados, e o que faremos depois, quando pudermos sair? o que é poder sair? no fundo, no fundo, é como se voltássemos a ser o humano que mora na caverna. se é que alguma vez saímos da caverna.
entendo melhor as pinturas rupestres. tento desenhar também, mas não crio cavalos, mamutes, nem pinguins. o melhor que sei é imprimir minha mão manchada nesta pedra.

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