os tempos
sempre foram estranhos mas nem sempre éramos nós no centro deste espanto.
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desde domingo as crianças menores de catorze anos podem sair
por uma hora acompanhadas de um adulto. a cidade se transformou de um momento
pro outro. gritos, risadas, barulho de patinetes e bicicletas. mais no meio da
manhã e no final da tarde.
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não sei como vai ser sair deste isolamento, voltar a
encontrar pessoas nas ruas, cumprimentar, conversar um pouco sobre bobagens.
que tensão permanecerá no ar e por quanto tempo? teremos ainda mais medo uns
dos outros para sempre?
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hoje fiz pão. quando o coloquei para assar, o forno
desligou. e não dava sinal de vida. que aflição. o pão ali precisando do maior
calor de todos e o forno se recusando a funcionar. há quem diga que forno não
está vivo por isso não dá sinal de vida nunca e tampouco tem querer, não se
recusa a nada, deve ser algum problema técnico. é, eu sei. se bem que sinto
saudade de objetos que me acompanharam por muito tempo na vida. de uns sapatos
de couro que eram muito macios, com solado de borracha comprados numa
liquidação da alpargatas. e também do gurgel, do barulho do motor, do cheiro,
do jeitão dele. e dos tatamis que durante tanto tempo foram nossa cama. dos
vidros em que já minha avó guardava o açúcar e o café e também segui guardando neles
açúcar e café. da porta de ferro da cozinha por onde se podia ver quem é que
chegava no portão. (e me faz lembrar da alegria do meu filho quando era pequeno
e viu um dia meu pai chegar e correu correu pra abraçar.)
depois, uns minutos depois, consegui religar o forno. não
perdi o pão. ficou bonito. não sei ainda se ficou bom.
a neide rigo (come-se.blogspot.com) está oferecendo
assessoria personalizada para quem está tentando fazer fermento natural ou pão
em casa e não está conseguido. será uma personal neider.
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quando penso em pão penso em comida. pensar em comida me faz
pensar em fome. não na minha fome pequena e miúda de umas horas sem comer.
penso na fome, fome de verdade. e dia desses ouvi numa análise sobre
aproveitarmos este momento de crise para recriarmos nossa forma de viver, que
atualmente se produz no mundo mais de um quilo de cereal por pessoa por dia. ou
seja, mais de 7,8 bilhões de quilos de cereal. e ainda assim quinze mil
crianças morrem de fome por dia. nosso problema não é produzir as coisas que
mantém a vida. é chegar a um acordo sobre quem tem direito a o quê.
no meio desta confusão toda, o principal debate é sobre direitos.
parece tão básico e nem assim há consenso. parece que o maior consenso tem sido
de que a terra fica linda sem humanos, com os bichos passeando pelas cidades. pavões
em barcelona (dizem, não vi), o monstro na beira do lago ness, golfinhos em
valencia (me mandaram notícias), cervos na beira da praia (recebi uns vídeos),
cangurus atravessando cidades na austrália, linces não sei onde, tigres,
elefantes, sem contar os pombos e ratos que ninguém faz questão de registrar.
não estou neste consenso.
prefiro o ponto de vista de pensadores como krenak e o
kopenawa, por exemplo, que nos alertam para o todo que somos, vida no planeta, vida no universo.
um conjunto. é tão difícil assim a gente se entender parte de um conjunto,
mesmo sendo cada um único no tempo e no espaço? não haverá outro eu. também não
haverá outra pedra. outra árvore como esta que vejo da janela. não haverá outro
momento agora em que escrevo. e nem por isso me sinto desconectada, à parte,
isolada.
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se a escrita é uma ponte, nos conectamos agora entre uma
ponta e outra deste fio, deste pensamento, deste existir. um emaranhado.
um nó.
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que saudade de abraços.
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