29 de abril de 2020

cova rasa


há algum tempo me cadastrei numa página da nasa que avisa quando a estação espacial passa por cima da cidade onde moro. ontem entrou um aviso dizendo que esta manhã a ela estaria acima da minha cabeça. como seria já dia, não daria para ver. mesmo assim por um tempo pensei nas três pessoas que estão ali, orbitando a terra enquanto a gente se tranca em casa. eles também estão trancados. menos chances ainda de sair. não há janela pra rua, nem palmas, nada. o azul da terra e um espaço mínimo de convívio. penso na laika que morreu de susto e sem ar. o que a gente faz com os “outros”, com os que consideramos diferentes, é tão cruel. se não for comigo, não estou nem aí? ou tanto faz o que acontece desde que não me afete. o que é que não me afeta?
escutei também a fala de um astronauta sobre como lidar com o medo. ele diz que saber mais é que reduz o medo. não é bom lidar com os riscos simplesmente cruzando os dedos. depois, ele explicava a beleza de se afastar da terra, de deixar para trás um ponto pequeno no mapa e olhar para a imensidão que, escura, se revela estrelada à sua frente. tenho me sentido assim, vamos dentro de uma nave, já saímos do lugar que  era a nossa casa e olhamos pra frente, alguns pontos luminosos. como é que se faz pra traçar caminhos entre os pontos luminosos? não sei. por estes dias sei que sei muito pouco.
este misto de esperança e tristeza. como num artigo que anda circulando por aí. e, com diz uma amiga querida, uns dias mais tristeza, noutros alguma esperança. olho, olho, olho e não sei nada.

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miklos radnoti  foi um poeta húngaro nascido em 1909 e que morreu em 1944 depois de ter sido obrigado a marchar muitos quilômetros por tropas nazistas em retirada, esvaziando campos de concentração para não deixar testemunhas. quando já não podia mais andar, não bastou aos soldados deixá-lo abandonado. fuzilaram. jogaram o corpo numa vala comum. dezoito meses depois, quando fizeram a exumação, encontraram um bloquinho no bolso. ele seguiu escrevendo escrevendo escrevendo até o final. que grito é esse que a gente tenta lançar pro universo, pro futuro, pra gente mesmo? o que ele escreve é um misto de tristeza e esperança.

Mellézuhantam, átfordult a teste
s feszes volt már, mint húr, ha pattan.
Tarkólövés. – Így végzed hát te is, -
súgtam magamnak, – csak feküdj nyugodtan.
Halált virágzik most a türelem. -
Der springt noch auf, – hangzott fölöttem.
Sárral kevert vér száradt fülemen.

Despenquei ao seu lado, seu corpo revirou
e já estava tenso como corda a ponto de se romper.
Tiro na nuca - É esse também o seu fim, -
sussurrei para mim mesmo – só fique quieto.
A paciência agora está florindo morte. -
Der springt noch auf - soou acima de mim.
Lama com sangue secou no meu ouvido.

(Miklos Radnóti, Szentkirályszabadja, 31 de outubro de 1944)


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a luz da tarde bate nas plantas e o verde fica meio luminoso, as flores ganham uma intensidade que eu diria maravilhosa se maravilha não fosse uma cor específica. é como se tudo tivesse sido criado agora mesmo. um início. estou metida num projeto que brinca com a ideia de que todo fim é também um começo. sabemos que é assim, sempre. mas às vezes é mais  difícil visualizar o que é que começa neste fim.

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lembrei do dia que fui com chico até o pelezão para fazer exame de saúde para podermos usar a piscina que quase sempre estava fechada mas quando estivesse aberta só poderiamos usar se o exame de saúde estivesse em vigor e fomos e era de tarde e depois de passarmos pelo médico – nem lembro do médico nem do exame – lembro que estávamos esperando um pouco porque a chuva que ameaçava era imensa, estas tempestades tropicais o céu cinza escuro cada vez mais baixo raios e trovões e água, muita água e quando a chuva parecia ter amainado, voltávamos para casa e ao pular a água da enxurrada, chico perdeu um pé de havaiana, ele estava com as minhas havaianas, não sei por que, e lembro da havaiana indo na enxurrada como um corpo morto no longo rio como um tronco de madeira ilegal cortado no escuro da noite transportado mogno para ser móvel nas casas ricas da europa. as águas sujas de sarjeta da cidade, o céu baixo, nuvens densas e escuras, e a havaiana indo como se fosse alguém que a gente amasse.
 

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a gente sabe que tipo de pessoa, ao saber das mortes, ou de qualquer morte, diz "e daí?". só se surpreende quem quis se enganar.

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