6 de abril de 2020

corrente de poesia


pessoas queridas me mandam correntes de poesia. recuso. digo que não, que não quero, que não posso. que não aguento mais poesias que chegam nas mãos quando o que quero é por as mãos os olhos a boca no mundo, saber por mim mesma, sem a poesia de ninguém, sem que me ofereçam o mundo organizado, um mundo gasto, já lido visto lambido sorvido e sabido por outro.
tenho um pouco de medo de ser muito áspera. evito a aspereza. não quero ser áspera nem comigo mesma nem com quem convive comigo nem com quem delicadamente me escreve e propõe uma corrente assim, ou outra qualquer.
 
***
no meio da aflição de não querer poesias mais, caio por acaso numa fala da angélica sobre diários de quarentena que uma amiga me conta. resolvi seguir só para me convencer de que é mesmo impossível seguir o que as pessoas propoem para esses dias, que não dá para escrever em confinamento porque me falta a matéria do mundo, mas o que ela diz? diz assim: olhe pela janela cada manhã e anote o que viu. coisas pequenas. não espere encontrar nada demais. ou: escreva sete coisas vistas, sete coisas feitas, sete coisas ouvidas, sete coisas, se entendi bem. quantas coisas for. olhar o dia, o em volta, com uma nova atenção, com a simplicidade da vida como se nem fosse, sendo.
 
***
na índia, pessoas que sobram nas cidades caminham por muitos dias pra voltar pra badaun, agra, azamgarh, aligarh, lucknow, gorakhpur centenas de quilômetros para encontrarem a família, para terem comida, um pouco de amor, talvez. alguns morrem no caminho. 

***
anoto: a luz que incide na chaleira, os prendedores verdes na roupa branca, o pé de batata que cresce, os fiapos brancos no tapete da sala, o botão do gerânio rosa, o céu cinza acima das folhas que estão num verde tão fresquinho. e ontem ficamos atentos para ver passar a estação espacial. o que parece imóvel no escuro do céu, passou muito rápido sobre nossas cabeças. a luz de um avião, de uma estrela. há três pessoas lá dentro. acenamos. obviamente eles não viram.

***
à noite sonhei que tinha um bebê, um menino. ao pegar no colo, notei que tinha uma outra cara na nuca, uma menina. e eu não soube mais como pegar no colo, para que os dois rostos pudessem ser vistos. também não soube como colocar para dormir. só de lado e mesmo assim me senti desastrada pra lidar com o que a vida tinha me dado.

***

quantos morreremos no caminho?

arundhati roy: https://www.ft.com/content/10d8f5e8-74eb-11ea-95fe-fcd274e920ca

Nenhum comentário: