2 de abril de 2020

listas da morte


aos poucos, chegam histórias de horror, como se a morte, qualquer morte, em meio a esta pandemia já não fosse suficientemente horrorosa, uma vez que quem morre não tem uma mão para segurar e quem fica não pode se despedir, não tem como viver o luto com serenidade. não há serenidade nestes tempos.
leio que como não há possibilidade de se atender todas as pessoas que precisam ser entubadas, em alguns países as equipes médicas já tiveram que tomar decisões duras entre uma vida ou outra. hoje também soube que uma mulher de 90 anos abriu mão do respirador para que outra pessoa mais nova pudesse usar, argumentando que já tinha vivido o suficiente. e morreu.
sei que há beleza neste gesto, mas sei também que é uma situação que não deveria existir: não faz sentido algum alguém ter que escolher entre a manutenção de uma vida ou outra, cada um é um, uma coincidência única no tempo e no espaço.
me faz  lembrar alguns casos nos campos de concentração nazistas, em que algumas pessoas de fora dos campos se ofereciam em troca de quem estava lá dentro. especialmente no lugar de crianças que seriam mortas. e a troca se fazia. como assim? se havia alguém que cuidava das mortes, e aceitava um voluntário para morrer no lugar de outras pessoas, como é que esse alguém  seguia matando, como é que não se dava conta do absurdo de contabilizar as mortes, do absurdo de matar?
mais recentemente o aplicativo de uma rede social também anunciava: para cada centavo que o usuário doasse, a empresa dona da rede social, também doaria um centavo. por que a empresa não doa de uma vez? por que fazer o usuário (em geral a ponta frágil e pobre de um grande mecanismo) se sentir responsável por uma coisa que não é sua responsabilidade? se a empresa tem dinheiro, que doe. ou que pague mais impostos. ou.
e sei também que não é o acaso  que vai definir as mortes nesta pandemia. há um cálculo concreto que leva em conta quanto se investiu em leitos de uti, em pesquisa, em políticas públicas de saúde em cada país ou região. é isso que definirá se haverá mais ou menos mortes entre as diferentes coletividades do mundo.
e quanto menos leitos de uti, mais será preciso fazer listas. não serão listas de desejos como fazem as crianças para lidar com a imensidão do mundo, mas listas perversas, que alguém terá que fazer, colocando vidas na balança: e que vida vale mais? e quem quer ser este alguém que decide qual vida segue viva e qual vida se acaba? quem quereria ser este anjo da morte. e, depois, quando ultrapassarmos esta voragem,  quem vai lidar com o pesadelo desta gente - dos que sobreviveram às custas de outras vidas, e dos que tiveram que tomar a decisão?
não há nada neste e nos próximos momentos que não diga respeito a todos nós.
acendo uma vela.
e espero.

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