dia desses li: “não ficará tudo bem. não estava tudo bem. teremos
sorte se ficar um bocadinho diferente.”
***
alguns dias acredito que seremos capazes de nos insurgir
contra a ordem que atualmente impera no mundo (ocidental, pelo menos). que nos
manifestaremos fartos de tanto consumismo, de tanta desigualdade, de tanta
concentração de riqueza, de tanto tempo que desperdiçamos com o que não vale
nada. penso que os dias de confinamento, estes, em que olhamos o nosso
cotidiano desmitificado e nos damos conta do que realmente necessitamos – e com
tão pouco já estamos tão bem – teremos uma epifania coletiva e nos tornaremos
mais simples, mais solidários, mais preocupados com todos e o todo que nos
rodeia.
mas sei também que nada disso virá por inércia. como as
pessoas não ficam sábias só por envelhecerem. a sabedoria não vem por decurso
de prazo. é uma outra coisa. então, é mais provável que neste confinamento fiquemos
ainda menos sábios, que imaginemos uma organização social tal que controle
todos para que nada saia do roteiro. como
se fosse possível que houvesse um roteiro,
como se houvesse um padrão de como viver.
a gente não sabe como viver. até hoje
veio fazendo umas tentativas. nas últimas décadas andamos detonando muito o
espaço físico e os corpos ao fazer as nossas tentativas. e como nada nunca volta a ser
como era antes, que pelo menos a gente gaste um tempo do confinamento pensando
o que é que gostaria que fosse diferente, pra sairmos desta encalacrada.
tenho me feito esta pergunta: do que é que eu abriria mão
pra que o mundo seja um pouco diferente, que vá ao menos um pouquinho na
direção do mundo que fosse menos desigual, com menor concentração de renda,
minimamente sustentável. não tenho resposta. talvez a ausência de resposta seja
por querer achar que o que faço já é “tudo o que se pode fazer”. não é verdade.
mas não estou sabendo olhar.
***
é como se antes eu passasse muito tempo olhando pro céu –
azul, com nuvens, com estrelas, com chuva – e agora, de um momento a outro não
me deixassem levantar a cabeça e eu só pudesse olhar para o chão. talvez eu
esteja me arrastando e por isso o chão parece tão próximo e cheio de detalhes.
mas quanto mais olho o chão imediato, o chão mais próximo do meu passo, menos
consigo ver o caminho. não vejo. tenho me esforçado no exercício mental de
juntar os pedaços de caminho que vi estes dias e buscar entender que desenho
faz o caminho, se há curvas, se pedras, se terra. nas beiras.
***
nas beiras dos caminhos, me chegam umas mensagens tão
bonitas. há quem cuide de gatos, cães e galinhas. que descreve a aventura de
acolher os filhotes. de alimentá-los, de não enlouquecer. há quem deixe de usar as lentes de contato.
há quem faça um bolo cada dia. bolo pequeno, porque a farinha é pouca e menos
ainda são as bocas, mas é tão bom um bolo fresquinho. há também quem finja que
nada está acontecendo e porque já vivia sem sair de casa, segue fazendo tudo como
antes: as compras pelo telefone, os amigos pelo telefone, as notícias pelo
telefone. e os abraços? não tem skype que dê conta de abraço.
***
pois é, e os abraços? que já andavam raros: agora ficaremos sem?
***
exercitar a percepção sobre o mu, o espaço que há entre as coisas.
há tanta coisa que a gente não conhece.
por exemplo, você sabe de onde vem o beijo?
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