9 de abril de 2020

um bocadinho diferente


dia desses li: “não ficará tudo bem. não estava tudo bem. teremos sorte se ficar um bocadinho diferente.”

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alguns dias acredito que seremos capazes de nos insurgir contra a ordem que atualmente impera no mundo (ocidental, pelo menos). que nos manifestaremos fartos de tanto consumismo, de tanta desigualdade, de tanta concentração de riqueza, de tanto tempo que desperdiçamos com o que não vale nada. penso que os dias de confinamento, estes, em que olhamos o nosso cotidiano desmitificado e nos damos conta do que realmente necessitamos – e com tão pouco já estamos tão bem – teremos uma epifania coletiva e nos tornaremos mais simples, mais solidários, mais preocupados com todos e o todo que nos rodeia.
mas sei também que nada disso virá por inércia. como as pessoas não ficam sábias só por envelhecerem. a sabedoria não vem por decurso de prazo. é uma outra coisa. então, é mais provável que neste confinamento fiquemos ainda menos sábios, que imaginemos uma organização social tal que controle todos para que nada saia do roteiro. como se fosse possível que houvesse um roteiro, como se houvesse um padrão de como viver. 
a gente não sabe como viver. até hoje veio fazendo umas tentativas. nas últimas décadas andamos detonando muito o espaço físico e os corpos ao fazer as nossas tentativas. e como nada nunca volta a ser como era antes, que pelo menos a gente gaste um tempo do confinamento pensando o que é que gostaria que fosse diferente, pra sairmos desta encalacrada.
tenho me feito esta pergunta: do que é que eu abriria mão pra que o mundo seja um pouco diferente, que vá ao menos um pouquinho na direção do mundo que fosse menos desigual, com menor concentração de renda, minimamente sustentável. não tenho resposta. talvez a ausência de resposta seja por querer achar que o que faço já é “tudo o que se pode fazer”. não é verdade. mas não estou sabendo olhar.

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é como se antes eu passasse muito tempo olhando pro céu – azul, com nuvens, com estrelas, com chuva – e agora, de um momento a outro não me deixassem levantar a cabeça e eu só pudesse olhar para o chão. talvez eu esteja me arrastando e por isso o chão parece tão próximo e cheio de detalhes. mas quanto mais olho o chão imediato, o chão mais próximo do meu passo, menos consigo ver o caminho. não vejo. tenho me esforçado no exercício mental de juntar os pedaços de caminho que vi estes dias e buscar entender que desenho faz o caminho, se há curvas, se pedras, se terra. nas beiras.

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nas beiras dos caminhos, me chegam umas mensagens tão bonitas. há quem cuide de gatos, cães e galinhas. que descreve a aventura de acolher os filhotes. de alimentá-los, de não enlouquecer.  há quem deixe de usar as lentes de contato. há quem faça um bolo cada dia. bolo pequeno, porque a farinha é pouca e menos ainda são as bocas, mas é tão bom um bolo fresquinho. há também quem finja que nada está acontecendo e porque já vivia sem sair de casa, segue fazendo tudo como antes: as compras pelo telefone, os amigos pelo telefone, as notícias pelo telefone. e os abraços? não tem skype que dê conta de abraço.

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pois é, e os abraços? que já andavam raros:  agora ficaremos sem?

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exercitar a percepção sobre o mu, o espaço que há entre as coisas.
há tanta coisa que a gente não conhece.
por exemplo, você sabe de onde vem o beijo?

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