dia da
terra.
antes,
cheguei a insistir na ideia de ser cremada (depois de morrer, obviamente). já
abri mão. aliás, abri mão de decidir o que será feito com o que sobra da gente
depois da morte.
tenho
pensado que ser abraçada pela terra, envolvida pelos fungos e bactérias e
vermes que habitam a terra não é uma má ideia. virar composto. virar húmus. ser
a matéria úmida que compõe o planeta e repõe o ciclo. como um dia uma dobra do
universo envolverá num abraço a Terra morta, que estará pronta para ser húmus
de alguma outra coisa que virá.
neste dia
da terra, o exercício é lembrar que sou terra. que componho a Terra: este
maiúsculo espaço, se comparado com meu tamanho, tão minúsculo se considerado o
universo. este pó que somos na superfície desta poeira. ser um.
***
o que sobra
de nós quando estamos mortos me lembra o dia em que morreu o pai de uma amiga.
estávamos reunidos num piquenique quando ela recebeu a notícia. no dia
seguinte, meu filho, que tinha uns cinco anos, quis ir comigo ao velório.
fomos. ele, muito compenetrado fez a cara que todo mundo fazia. deu um abraço
na nossa amiga e na mãe da nossa amiga. depois, quis ver a pessoa morta. fomos
de mãos dadas. ele me pediu que o levantasse. ele olhou, olhou, não disse nada.
disse que já estava bom e podíamos ir. saímos em silêncio. chegando já no
carro, antes de abrir a porta ele me pergunta onde estavam os ossos da pessoa
que tinha morrido, eu disse que estavam ali, dentro da pessoa. e o coração?
também? e o pulmão? e o cérebro? e cada um dos órgãos que ele já sabia o nome?
e pra tudo eu dizia que estava ali dentro, sem entender aonde ele queria chegar
com aquelas perguntas todas. no fim, ele disse: mas se tudo está lá, por que a
pessoa já não está?
o mistério
é o que sobra de nós quando já não estivermos.
***
***
meu pai foi
cremado. até o momento de colocarem o caixão no forno do crematório, eu achava
que ele iria se levantar e dizer que tinha sido só uma brincadeira, que estava
vivo e bem. no meu pensamento ele ria, ria de chorar e saía do meio das flores
que cobriam o corpo dele.
obviamente
não foi assim. me lembro que, depois, levando as cinzas para o mar, constatei
que pesavam como pesa um bebê.
***
ser terra.
ser um.
as sementes
no abraço da terra. se elas não morrem, não brotam.
hoje parou
de chover. abriu um solzinho de manhã, mas já nublou de novo.
recebi um
convite para um grupo de fb que é uma biblioteca virtual de poesia, crítica, o
que for que pareça interessante. já guardei alguns livros para ler depois. e
antes que a vontade de guardar todos os livros no meu computador me tomasse,
respirei e parei de baixar arquivos. a gente tem uma tendência de acumulação
difícil de ser controlada. há muitos livros maravilhosos no mundo mas nem todos
eu terei tempo de ler. ou nem todos eu preciso ter. quando eu quiser, poderei
buscá-los e ler. mas vejo estes dias, em que vemos tanto a casa dos outros, como nunca vimos, que ter livros, para um determinado grupo sociocultural é uma espécie
de fetiche. poucos têm bibliotecas, no sentido de ser um conjunto de livros que
contam alguma narrativa, que são usados de referencia. vejo que na maioria dos
casos é só um monte de livro, como quem tem um monte de sapatos, ou pratos, ou
roupas, ou escovas de dente. sempre pensei livros como minha história, guardar
aquilo que releio e uso. a iniciativa de compartilhar os livros é boa, e fica sendo uma biblioteca virtual linda e inspiradora, que posso visitar.
também não tenho tempo de ver os muitos filmes que
os amigos sugerem. nem responder todas as mensagens como eu gostaria de
responder.
o tempo, as
horas, os minutos, as batidas do coração são as mesmas, com ou sem quarentena.
e eu gostava dos passeios a pé, de bicicleta, até de ônibus eu gostava de
andar. ver as pessoas. os pequenos atritos que há entre nós humanos. como será
o mundo no futuro próximo quando suspenderem a quarentena? penso nas
distâncias, nos olhares desconfiados.
depois
deixo de pensar.
***
o cheiro
de filhotinhos que mamam e o cheiro da terra em decomposição atravessam todo pensamento.
***
***
Nem tudhatom, hogy másnak e tájék
mit jelent,
nekem szülőhazám itt e lángoktól
ölelt
kis ország, messzeringó gyerekkorom
világa.
Belőle nőttem én, mint fatörzsből
gyönge ága
s remélem, testem is majd e földbe
süpped el.
(Milklos Radnoti)
Nenhum comentário:
Postar um comentário